Em vez de sacrificar a saúde e a educação no ajuste fiscal, o ex-ministro propõe o enfrentamento à injusta estrutura tributária do País
Subfinanciado desde a sua criação, o Sistema Único de Saúde já tinha a sua sustentabilidade ameaçada pelas transformações que o País passa: um acelerado envelhecimento da população, acompanhado do aumento da prevalência de doenças crônicas, a demandar tratamentos prolongados e dispendiosos. A PEC 241, que congela os gastos públicos por 20 anos, apenas agrava o problema, com a perspectiva de perda real de recursos, avalia o médico José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde do governo Lula.
Aprovada por uma comissão especial da Câmara, a proposta deve ir a votação no plenário nesta semana. Para diminuir resistências parlamentares à aprovação, o relator Darcísio Perondi (PMDB-RS) combinou com o governo uma mudança no projeto. O congelamento dos recursos de saúde e educação começaria não em 2017, como previa a proposta original do governo, mas em 2018. Além disso, o novo relatório estabelece que a base de cálculo do piso da saúde em 2017 será de 15% da receita líquida, e não de 13,7%, como previsto inicialmente.
Mesmo com o alívio no primeiro ano, é prevista uma perda acumulada de centenas de bilhões de reais ao longo dos 20 anos de vigência. “Essa decisão do Congresso é uma condenação de morte para milhares de brasileiros que terão a saúde impactada por essa medida irresponsável”, diz Temporão, em entrevista a CartaCapital. “Estamos falando de fechamento de leitos hospitalares, de encerramento de serviços de saúde, de demissões de profissionais, de redução do acesso, de aumento da demora no atendimento.”
Para o ex-ministro, o País renuncia ao seu futuro ao sacrificar a saúde e a educação no ajuste fiscal. “Se existe um problema macroeconômico a ser enfrentado, do ponto de vista dos gastos públicos, há outros caminhos. Mas este governo não parece disposto a enfrentar a questão da reforma tributária”, afirma. “Temos uma estrutura tributária regressiva no Brasil, que penaliza os trabalhadores assalariados e a classe média, enquanto os ricos permanecem com os seus privilégios intocados”.
CartaCapital: O que representa a PEC 241 para a saúde pública?
José Gomes Temporão: Todos nós, especialistas em saúde pública que militam pela reforma sanitária há décadas, estamos estarrecidos com essa proposta. De um lado, ela denota a ignorância do governo sobre a dinâmica do setor de saúde. Bastaria fazer uma consulta ao portal Saúde Amanhã, da Fiocruz, que abriga uma série de estudos prospectivos dos impactos das transformações econômicas, políticas e sociais no campo da saúde para as próximas décadas, para que a PEC 241 fosse repensada.
Estamos vivendo um período de aceleradas transformações no Brasil do ponto de vista demográfico, epidemiológico, tecnológico e organizacional. Essas mudanças vão pressionar substancialmente o Sistema Único de Saúde, ameaçando, inclusive, a sua sustentabilidade econômica.
CC: Um desses fatores de pressão é o envelhecimento da população brasileira, pois os idosos demandam maior atenção médica.
JGT: Sim, esse é um dos aspectos: a transição demográfica. O Brasil está passando por um processo de envelhecimento populacional muito rápido, praticamente na metade do tempo que a França levou para concluir essa mesma transição. Também há uma mudança no padrão das enfermidades.
As doenças infectocontagiosas estão perdendo espaço relativo, enquanto avançam as doenças crônicas, que representam um custo mais alto, não apenas no diagnóstico, mas em virtude do tratamento prolongado, que pode se estender por toda a vida. A Organização Mundial da Saúde projeta que, em 2030, as principais causas de mortalidade no mundo não serão mais as doenças cardiovasculares ou cerebrovasculares, e sim o câncer, que tem um custo de tratamento altíssimo.
CC: Ou seja, os gastos com saúde só tendem a aumentar.
JGT: Na verdade, acho equivocado tratar saúde como gasto. Do conjunto de políticas sociais, ela tem uma dinâmica própria que pode, inclusive, fazer parte da solução macroeconômica para sair da crise. Ao contrário de outras áreas, nas quais a tecnologia costuma substituir o trabalho humano, na saúde ocorre justamente o contrário. Quanto mais tecnologia você incorpora, maior será a demanda de mão-de-obra qualificada.
Gostaria, porém, de destacar uma profunda injustiça do ponto de vista político: os que estão patrocinando a PEC 241, esse crime contra a saúde pública, estarão protegidos por seus planos e seguros-saúde, inclusive subsidiados pelos contribuintes. Os funcionários públicos dos três poderes têm planos financiados, em parte, pelos impostos pagos por todos os brasileiros. Os legisladores fazem parte dos 20% da população que dispõem de planos de saúde, mas essa decisão afetará profundamente os 80% que só podem contar com o sistema público.
CC: O governo argumenta que não está retirando dinheiro da saúde.
JGT: Isso é retórica. Eles também dizem que, para 2017, colocaram recursos a mais. No entanto, a partir de 2018 a saúde estará submetida à mesma regra, de ter o orçamento reajustado pela inflação acumulada no ano anterior. Ora, isso é desconhecer completamente que a inflação e a dinâmica da saúde seguem uma trajetória absolutamente distinta. Todos sabem disso, há toneladas de estudos que comprovam esse descompasso. Uma medida como essa, que vigorará por 20 anos, levará a um profundo desfinanciamento da saúde, que a partir do terceiro ou quarto ano terá uma perda real de recursos, enquanto a demanda só aumenta.
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